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O premiê Boris Johnson promete concluir o Brexit, durante a campanha eleitoral de dezembro de 2019. Em vídeo, suas declarações desta quarta-feira no Parlamento britânico. BEN STANSALL / AFP |
El País
Não haverá festa. Apenas uma
mistura de euforia contida entre os vencedores e de tristeza e resignação entre
os derrotados de uma batalha que durou quatro anos e meio, desde que os
cidadãos britânicos decidiram, no referendo de 2016, se desligar da União Europeia.
A partir da meia-noite de hoje (hora de Bruxelas; 23h em Londres, 21h em
Brasília), os cidadãos e empresas do Reino Unido deixarão de estar sob o marco
normativo que condicionou suas vidas e atividades econômicas nos últimos 47
anos. Um acordo comercial mínimo, que necessitará de constante supervisão e
desenvolvimento no futuro, lançará as bases da nova relação entre as ilhas e o
continente.
É revelador que, enquanto
nesta quarta-feira a Câmara dos Comuns realizava o último grande debate sobre o
assunto que mais feridas e divisões provocou no país nos últimos anos, os
principais canais de TV decidam ignorá-lo e transmitir ao vivo a entrevista
coletiva dos cientistas que acabavam de autorizar a vacina do coronavírus
desenvolvida pela Universidade de Oxford com o laboratório farmacêutico
Astrazeneca. O Brexit acabou por cansar os envolvidos. O grande acerto do
slogan de Boris Johnson em sua vitoriosa campanha eleitoral de dezembro de 2019
—Get Brexit Done (“concluir o Brexit”)— era que não apelava tanto à obsessão
dos eurocéticos, e sim à promessa de acabar com um pesadelo nacional.
A “questão europeia”
liquidou a carreira da primeira-ministra Margaret Thatcher, torturou seu
sucessor, John Major —que se referia aos eurocéticos do seu Partido Conservador
como “esses bastardos”—, triturou Theresa May, incapaz de desfazer um nó górdio
que herdou a contragosto, e levou Johnson à Downing Street. Foi o único de
todos eles a entender que, quando se cavalga uma emoção, os detalhes técnicos e
as promessas são facilmente dispensáveis.
Johnson prometeu que a
Irlanda do Norte acompanharia o resto do Reino Unido, mas a realidade é que
este território britânico continuará dentro do espaço alfandegário da UE.
Assegurou que seu Governo recuperaria o controle das águas —e agora a indústria
pesqueira expressa sua irritação e se considera a grande perdedora do acordo
alcançado com Bruxelas. Obteve seu principal objetivo: um pacto comercial que
evita a imposição de tarifas ou cotas no comércio entre a ilha e o continente.
Em troca, as empresas britânicas serão submetidas, nos próximos anos, a uma
papelada e a uma burocracia que encarecerão seus custos e reduzirão sua
competitividade.
“Jamais perseguimos uma
ruptura, e sim uma solução para a velha e polêmica questão de nossa relação
política com a Europa, que atormentou toda a nossa história desde o final da
Segunda Guerra Mundial”, proclamou Johnson com seu recém-adquirido tom de
humildade e respeito pela UE, a adversária contra a qual construiu sua carreira
profissional e política. “[Winston] Churchill e [Margaret] Thatcher teriam se
mostrado orgulhosos com o feito alcançado. O Reino Unido recuperou sua
liberdade e sua independência”, dizia, com anacrônica solenidade, o deputado
Bill Clash, um dos mais ativos na defesa do euroceticismo na Câmara dos Comuns.
Os cidadãos britânicos
recuperaram seu histórico passaporte azul —uma das causas mais histriônicas
defendidas pelos tabloides sensacionalistas nos últimos anos—, mas perderam a
liberdade de movimento que resultava da filiação à UE. A partir desta sexta, 1º
de janeiro, os cidadãos europeus que quiserem trabalhar ou viver no Reino Unido
deverão se submeter a um novo sistema de imigração por pontos e competir em
igualdade de condições com os imigrantes do resto do mundo. Os estudantes
universitários de ambos os lados do canal da Mancha já não poderão mais
desfrutar do convívio proporcionado pelo programa de intercâmbio Erasmus, que
ajudou a criar uma ideia de espaço compartilhado e inoculou o europeísmo entre
os jovens britânicos.
Uma amostra do intrincado e
complexo rastro deixado pelo debate sobre a Europa em várias gerações de
políticos britânicos é o deputado trabalhista Hillary Benn. Filho do histórico
líder trabalhista Tony Benn —o bennismo continua sendo uma forte corrente
interna dentro da esquerda britânica, como demonstrou o defenestrado Jeremy
Corbyn—, é um dos europeístas mais convictos do Parlamento de Westminster. Seu
falecido pai semeou a semente do euroceticismo no seio do trabalhismo. “Entre a
soberania e o interesse econômico, o Governo pensou que podia conseguir o
melhor dos dois lados. Mas sabia que isso era impossível e que chegaria a hora
de escolher”, disse Hillary Benn. “A partir de 1º de janeiro, deveremos
enfrentar uma nova questão: que tipo de relação queremos construir com nossos
sócios e amigos mais próximos?”
O Brexit provocou feridas
tão profundas no Partido Trabalhista quanto no Conservador. Corbyn, como líder
da oposição, optou por uma ambiguidade autodestrutiva, tentando conciliar seu
próprio euroceticismo, o sentimento contrário a Bruxelas que o populismo tinha
inoculado nos eleitores tradicionais do norte da Inglaterra, e o desejo de
seguir na UE por parte da maioria dos eleitores trabalhistas. Fracassou
estrepitosamente. E por isso seu sucessor, Keir Starmer, teve que finalmente
forçar a sua formação a engolir a amarga pílula de apoiar o acordo alcançado
por Johnson. Era isso, ou a alternativa de um Brexit duro. Isso, ou uma nova
guerra civil na esquerda britânica.
O Reino Unido sai muito menos
unido depois da aventura do Brexit. A Escócia votou majoritariamente contra se
desligar da UE, e o Governo nacionalista do SNP (Partido Nacional Escocês)
disputa as eleições regionais de maio com um único ponto em seu programa:
impulsionar um novo referendo de independência. As últimas pesquisas repetem o
mesmo resultado: uma clara maioria dos escoceses acredita que seu futuro será
melhor se andarem pelas próprias pernas. A chefa do Governo regional, Nicola
Sturgeon, já antecipou que, se obtiver a separação, sua primeira medida será
solicitar a adesão da Escócia à União Europeia.
Johnson negociou contra o
relógio para obter um acordo que evitasse acrescentar mais incerteza ao futuro
econômico de um país assolado como poucos pela pandemia da covid-19. Seu PIB
caiu mais de 11 pontos percentuais em 2020, e a dívida pública disparou a
níveis históricos. O setor de serviços (financeiros, jurídicos e de seguros),
que representa 80% da economia do Reino Unido, ficou de fora do pacto alcançado
com Bruxelas, e a inquietação sobre seu futuro continuará viva quando 2021
chegar.